Matéria publicada na Gazeta do Povo em 16/01/2014

Gabriel Bittencourt, advogado, é especialista em ações de indenização, professor de Direito Civil e palestrante

Em mais de 25 anos de história formal – iniciada com a Constituição Federal de 1988 – a reparação do dano moral ainda não encontra repouso em águas tranquilas. Além de novos percalços, como o da suposta “indústria do dano moral” – que, frise-se, inexiste – a valoração desse tipo de dano nada avançou.

A dificuldade de arbitrar uma indenização em dinheiro para lesões a esse tipo de dano imaterial tem sido a razão para a sua quantificação em valores ínfimos. Em recente pesquisa feita a partir da análise de decisões de 2012 do Tribunal de Justiça do Paraná verifiquei que o valor médio arbitrado para as indenizações por danos morais decorrente de morte em acidente é de R$ 47.984,03. É difícil acreditar que a dor causada aos familiares da vítima falecida possa ser indenizada com tão pouco, principalmente em casos em que o responsável pela morte é alguém com boas condições financeiras, como no caso de uma grande empresa.

Apesar de encontrarmos não apenas um, mas diversos critérios que são utilizados pelas partes e pelos magistrados quando da discussão do valor da indenização por danos morais – como a condição econômica dos envolvidos, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a função punitivo-pedagógica da indenização, a proibição ao enriquecimento sem causa etc. – nota-se que, em verdade, a mensuração da indenização por danos morais deriva de um processo absolutamente subjetivo, marcado pelas convicções pessoais das partes e dos magistrados, e, infelizmente, por preceitos.

Minha experiência profissional – a qual deriva preponderantemente da atuação como advogado em ações de indenização, do estudo apaixonado do tema e, principalmente, da discussão do assunto com colegas – tem mostrado que individualizar cada situação e fazer uso de analogias e comparações são boas ferramentas para trabalhar a questão do valor da indenização por danos morais.

Como exemplo disso, lembro-me de sustentação oral que fiz no Tribunal de Justiça do Paraná, na qual eu defendia a viúva de um caminhoneiro morto num acidente rodoviário, em razão da conduta totalmente negligente de outro caminhoneiro, que transportava produtos para uma grande fabricante de alimentos mundial.

Em primeiro grau, a indenização foi arbitrada em R$ 50 mil em favor da viúva. Com base na pesquisa já mencionada, esse valor estava de acordo com a média encontrada em casos semelhantes na corte paranaense, mas o recurso foi feito para tentar aumentar essa indenização.

O protocolo determina que o voto do desembargador relator – aquele que estuda o caso e o apresenta aos outros dois que também julgarão – seja dado após a sustentação, mas neste caso o relator se manifestou antes, informando que mantinha a indenização em R$ 50 mil.

Pois bem. Inspirado pelo método americano de quantificação denominado per diem, procurei demonstrar que esse valor, que poderia parecer uma grande quantia, uma vez adequado à realidade daquele caso em especial, nada significava. A vítima, nesse caso, tinha 29 anos quando morreu. Supondo que ele viveria pelo menos 70 anos (a expectativa de vida de acordo com o IBGE é maior), teria ainda 41 anos pela frente. Esses mesmos 41 anos correspondem a 14.965 dias e a 359.160 horas. Ou seja, aquela indenização de R$ 50 mil correspondia ao pagamento de apenas R$ 3,34 por dia ou R$ 0,14 por hora de vida do marido daquela viúva.

O mais curioso era o seguinte: um dos produtos fabricados e vendidos por essa empresa é um chocolate, o qual é vendido por mais ou menos R$ 1,50. Sendo assim, caso efetivamente fosse mantido o valor da indenização em R$ 50 mil, estar-se-ia dizendo que a perda daquela marido e a eliminação de todos os sonhos e planos que a sua esposa tinha com ele estariam compensados com a entrega de 2 chocolates por dia pela empresa.

Assim questionei: será que com aquele valor a empresa processada realmente seria punida pelo seu transporte negligente? Será que, com R$ 50 mil, ela se sentiria estimulada a melhorar os seus serviços para que não acontecessem novos acidentes? Afinal de contas, tratava-se de uma das maiores empresas de alimentos do mundo. O valor, então, devia ser majorado.

O relator mudou o seu voto e triplicou o valor da indenização. Apesar de não resolver o problema da quantificação da indenização por danos morais, esse relato mostra que a individualização das situações e dos danos morais sofridos é fundamental, contribuindo de forma determinante para a avaliação do valor da indenização. E, claro, nos traz a certeza de que uma vida não pode valer apenas 2 chocolates.

Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-direito/artigos/2-chocolates-por-uma-vida-9egof3njxxtfjw3ntskxhnozy